Tancredo Lobo
O mundo civilizado, como o conhecemos organicamente, se estruturou e desenvolveu-se baseado em pilares como a cooperação, o conhecimento, a racionalidade, as tecnologias, a luta diversificada pela construção de um futuro melhor. Considerando todos os percalços nessa jornada, pode-se dizer que, em parte, a humanidade conseguiu isso. Definitivamente, vive-se melhor do que viviam nossos ancestrais povos das cavernas.
Contudo, essa evolução expansionista abriu espaço para a proliferação de todos os tipos de ideologias e práticas, tantas edificantes e outras nem tanto. Como exemplo destas, nesta reflexão, evocam-se as chamadas “redes sociais”.
Com a popularização da internete, aplaude-se, deslumbradamente, a comunicação instantânea, o envio e recebimento de mensagens, fotos, vídeos, e, desgraçadamente, a proliferação de mentiras.
Obviamente, a mentira, como contraponto da verdade, sempre existiu. Mas, com o uso e abuso das plataformas digitais, a mentira passou a ser a Política. Ferramentas essas apropriadas por todos os tipos de criminosos, em especial o que se comumente chama de “extrema direita”, “fascistas”, “neonazistas” etc.
Pela limitação da inteligência e a incapacidade de articular argumentos, esses grupos odientos constroem mentiras. As pautas dessas mentiras, teimosamente chamadas “fake news”, envolvem economia, política, administração pública, cultura e comportamento, para citar alguns. Dos porões da “meta” emitem deliberação: não precisa a checagem de fatos. Vale tudo. A esse estado de desordem e desagregação social, chamam de “liberdade de expressão”, algo tão absurdo, já que aqueles grupos são contra qualquer tipo de Liberdade.
Mas, por que a escolha das “redes sociais” como arena de luta contemporânea?
As tais “redes” são um fenômeno de massa. Um instrumento de cercamento e hipnotização de grandes rebanhos, com a utilização de parcos recursos financeiros e a mobilização de efetiva “linha de produção” robótica (humana ou maquinal). Divertidas, as “redes” vendem todo tipo de tralha e entregam, embutidas, as ideologias de destruição da civilidade.
As “redes sociais” não conectam pessoas porque não há espaço para a alteridade. Não se vê ampla divulgação e engajamento com o diferente, o limítrofe, o periférico, o anormal, o feio, não cabe o sofrimento humano, apenas a pasteurização e o divertimento. O algoritmo, que é a arquitetura e engenharia que fazem rodar esse mundo digital, funciona pelo padrão, pela mesmice, pela repetição. Assim como a “massas” funcionam pelo padrão e pela coerção, seguindo uma sugestionabilidade que lhe serve como programa, emanadas por um “pai” ou líder, um “führer” antidemocrático.
Este é um fenômeno contemporâneo, mas tem uma história de reflexão.
Em 1921, Sigmund Freud (1856-1939) fez publicar a obra “Psicologia das massas e análise do eu”.
Diz o psicanalista: Em raras situações, pode-se falar em psicologia individual (narcisismo, autismo), posto que as relações humanas são fenômenos sociais, às vezes pequenas relações, noutras relações de massa. Como diz Freud, na psicologia social o ser individual é “membro de uma tribo”, nomeada como povo, casta, classe, instituição, aglomeração. O autor fala em “instinto social”, que se manifesta como sentimento de rebanho, que se expressa como “mente de grupo”. E, como se sabe, na condução do rebanho, não há espaço para o divergente, o singular. Por isso, é crucial a padronização para se obter coesão.
Outro aspecto fundamental para se compreender a psicologia de massa, Freud recorre a categorias, como: “instinto gregário” e “horda primeva”. A citação literal a seguir é esclarecedora:
“É lícito dizer que as fartas ligações afetivas que vemos na massa bastam inteiramente para explicar uma de suas características, a falta de autonomia e de iniciativa de cada indivíduo, a similitude entre a sua reação e a de todos os demais, seu rebaixamento a indivíduo de massa, por assim dizer. Mas, se a olharmos como um todo, a massa revela mais do que isso; o enfraquecimento da aptidão intelectual, a desinibição da afetividade, a incapacidade de moderação e adiamento, a tendência a ultrapassar todas as barreiras na expressão de sentimentos e a descarrega-los inteiramente na ação… fornecem um quadro inequívoco de regressão da atividade anímica a um estágio anterior, que não nos surpreendemos de encontrar nos selvagens e nas crianças” (p.42).
Assiste razão ao fundador da Psicanálise ao definir a massa como um rebanho infantilizado. E disso se valem as “redes sociais” para entreter e despolitizar os indivíduos. Aqui se justificam as estratégias por agir num jogo sem regras.
Socialmente, sob uma perspectiva do Direito, a regulação das “redes sociais” é uma necessidade, como, analogamente, a regulação de qualquer tipo de relação social, como exemplo, uma empresa societária, um casamento. Regras deontológicas (deveres éticos e morais) são essenciais para a convivialidade dos agrupamentos humanos. Regulação esta que soa como um absurdo dentre boa parte da população brasileira.
Por que se arrasta tanto no congresso nacional do Brasil alguma normativa regulatória das plataformas digitais? Porque a maioria dos parlamentares (espelhando a população mediana) prefere uma Política da mentira, do vale tudo, da manipulação de um rebanho – em sua maioria – ignorante, especialmente analfabeta política.
Jaron Lanier, músico e cientista da computação, diz que as mídias digitais se tornaram como um parasita que se apropriou de seu hospedeiro. Daqui se infere a noção de um “câncer”, que, por dentro do organismo, o corrompe e o mata.
Nos faz lembrar Pepe Mujica, em mensagem comovente, dizer-se invalido por um câncer. E que, irreversível, espera morrer sossegado.
Mesmo louvando a atitude digna de Pepe Mujica, não nos peça para adotar uma atitude semelhante de entrega à situação, diante do câncer social provocado e alimentado pelas tais “redes sociais”. Espere de nós gritos, esperneio, reflexão, luta insubmissa pela remissão desse câncer. E que vença a civilidade.